11.29.2010

Amor é fome

Por mais que eu te tenha
Há olhos no canto dos lábios
E lábios por nascer nas flores
E flores por colher na chuva
E olhares por beber no orvalho
Por mais que eu te tenha
Há fogueiras por atear nas faces
E línguas por hastear em velas
E navios atracados nos cabelos
E rios que não me desaguam
Abres-me as grades do peito
E saís-me pela estrada da voz
E eu busco-te em campos de seda
E tu e eu corremos de mãos dadas
Há palavras que me enchem de fome!


manuel feliciano

11.28.2010

Veredas da alma

Meu amor, quando a natureza me nega os teus beijos
Entretanto os rebentos dos meus poros florescem
Chegam-me as primeiras andorinhas aos ombros
E as tuas mãos tocam-me em suaves chilreiros
Aquelas que se te abrem nas pálpebras da alma
Mas meu amor, há muito tempo que não tenho corpo
Nem tão pouco tenho a pretensão de ser visivel
E da mesma forma que a neve se torna em sol e sorrisos
Eu sou-te o alimento nas coisas mesmo se não as sentes
E acredita que os nossos lábios se tocam em auroras
Porque, os nossos beijos não são da terra, só do Paraíso!


manuel feliciano

11.26.2010

Caminhos por dentro

E o jardim das tuas pálpebras em tons de azul
E eu a tocar as flores com os meus lábios em neve
Sentado num banco que só eu tenho no peito
E as crianças de mãos dadas nos teus olhos
Serão os meus filhos no umbral à minha espera?
E a paz serena em seda preta a vestir-te o tronco
Jorra mais que a lua entre as abobodas dos montes
E os fios de cabelos cheios de frutos de carne
E eu perdido por caminhos como se me existissem
E a brisa dos teus olhos a naufragarem-me em barcos
E eu encontrado em ti como quem não se encontra
Numa ânsia misericordiosa que me abraça e ama.


manuel feliciano

11.25.2010

Flores da vida

Só pôde ter tudo
Quem nunca teve nada
Ter amado as coisas
Quem nunca as tocou
Só pôde ter vivido
Quem se trocou por um sonho
Só pôde ter sentidos
Quem viveu na solidão
Só pôde ser homem
A quem as dores amou.


manuel feliciano

11.24.2010

Dentro das coisas

Meu amor eu só sou dentro das coisas
Enquanto cerejeiras em flor no teu olhos
A chuva miudinha nos teus cabelos
O sol a abrir-te o coração da boca
E os meus labios a florecerem-te nos seios
Aparte disto sou floresta densa e escura
E o meu eu sombra nas tuas pálpebras com sol
Consciência vazia sem pilares e rio
E os meus braços uma ponte bamba
O meu coração deseja dar-te tudo
E as minhas mãos não esperam por nada!


manuel feliciano

11.22.2010

Neurose

E tu que dizes que a realidade é o que tocas
A lenha que arde e se consome
E os navios dentro dos vaga-lumes
O copo que se bebe e nunca esteve cheio
A mulher de carne como tivesse carne
A árvore abrindo a boca já de velha
Ainda a nascer dentro de mim
E a bala do amor desferida pelos olhos
E o sangue a escorrer invisivel
E os que nos sorriem por dentro da Primavera?
E a mulher transparente que respiro pelas narinas
E eu nos lençóis em veleiros de abraços
E fogueira que me aconchega de ausências
E eu a caminhar pelas ruas sem corpo?
E a minha alma feto dentro do teu ventre
E as pernas presas e eu no colo das coisas
Ah que doces neuroses verossímeis
As que efectivamente me embebedam
E sem as quais eu não chegaria a ser homem.


manuel feliciano

11.17.2010

linguagem do amor

Eu faço amor numa linguagem estranha
Ainda os nossos olhos mal se tocam
O sol escreve-nos asas nos ombros
E rouba-nos o som às palavras
As aves chilreiam-nos nos dedos
E enleiam-nos o coração com ninhos
Por entre os arbustos do peito
O mar soluça-nos dentro da garganta
E os veleiros rasgam-nos os sentidos
E a pele das rochas arrepia-se-nos na boca
Aos pés de palmeiras de uma ilha
Voamos tão longe com o corpo atado às ondas
E num fremir idioma em que nos amamos
Em vozes que nos desenham imagens indecifráveis
A saliva branca derrete-nos todos os sons
E eu e tu somos um país outro – o mundo!
Filhos de línguas estranhas que se gesticulam
E que mal se conhecem, abordam-se de frente
E passam ser outra coisa que vem dos céus!



manuel feliciano

11.16.2010

Mais além

Meu amor
Estou no limite da luz
Que os lábios temem na noite
Na terra ainda não cavada
À frente da trovoada
Das areias do deserto
Na abóbada do céu
No tempo que se dobra nas ondas
Para te colher como um anjo
E te receber com um beijo
Sem um trovão que perturbe
Ou a brancura da neve
Nos ossos alvos do corpo
E te mostrar o outro mundo
No pão quente das minhas mãos
Em Outonos que incendeiam
E Invernos que enternecem
E brisas que nos olham crianças
Sem folhas que se corroam
Com os grãos secos da chuva!


manuel feliciano

És-me

Na planície dos meus pulmões
Respiro o teu encanto
A brisa dos teus cabelos
Dedilha-me em rendas de trigo
Em pássaros húmidos nas pálpebras
E os teus dedos evaporam-se
Ao som de Citaras ancestrais
Conduzem-me aos teus suspiros
Por caminhos virginais
Onde os meus lábios se afogam
E as tuas mãos trepadeiras
Que se despenham do sol
E se libertam em fogo
Sou-te todo em sentimento
A arder fora das muralhas
Nos ramos desse teu tronco
Os teus pés o meu pensamento
Que me leva às alturas
Nas algemas do teu colo
Batem-me as ondas do mar
Revolto no teu vestido
O meu coração é-te a boca
Veleiro em águas profundas
De Flor de sal e de lágrimas
Que colho em teu altar de rosas
Enquanto me esvaio em teus seios.





Manuel Feliciano

11.09.2010

Agora que chove

Não chores amor, é só a chuva a sorrir
Pelos canaviais do céu
As casas e os jardins
Os olhos e os sonhos
Num colar de gotas de água
Que um beijo agradece
Enleado entre as folhas
Deslumbra-te com ele ao pescoço
Pintado com um até já dos pássaros
Embriagados nas nuvens
Ardendo de amor nos bicos
Lambe o sal e adocica-o
Voa num desmaio azul
Que a Primavera volta mais forte.



manuel feliciano

11.08.2010

Pássaros de água

Que importa que o sol chova nos cabelos
Que os verbos ranjam nos joelhos
Os olhares me esmaguem contra os muros
Os abraços sejam um charco de lama
Os beijos uma fogueira apagada
E eu a morrer de frio
Que os outros tenham pés e não me vejam
Que a lonjura me torne num galho seco
Beijem com o pensamento numa pedra
Se tu vens nessa fragrância de olhares maduros
E fazes-me ver ao longe onde os deuses dormem
Dar frutos onde não existem árvores
Das visões que rasgam o metal do escuro
Resplandecer em tudo o que não tenho
Se a tua sombra tem mais força que o corpo
Se o teu corpo me nasce dentro do mistério
Estou feliz e ainda bem que sou criança
E a realidade é algo que eu desconheço
E à turba exasperada que me faz troça
E eu pisco-lhes o olho esquerdo sem traça
E aponto-lhe um pénis viril com um dedo
Porque sou monte maninho e não me moldo
Às bocas que se derrocam e estão bem altas.


manuel feliciano

11.06.2010

As vírgulas nos músculos

E as vírgulas no lugar dos músculos
No calor das frases pausadas dos olhos
Correm-me na curvatura dos cotovelos
E deixam-me a fresca aragem
Da linha dos lábios acesos
Os beijos suspensos em orações
Enquanto te leio entre o paredão e o mar
As amoras amadurecem-te nos cabelos
E eu como-as deliciosamente à espera
Que os corpos se abracem sem parágrafos
Na semântica dos jardins que ardem
Nos poros da pele mais à frente
O que vai muito para além das Vírgulas
E do trote dos cavalos desenfreados.


manuel feliciano

11.02.2010

Ad aeternum

Que os barcos rasguem os braços de pedra
A ave voe na folha seca da língua
O sol consuma o vírus do mundo
A chuva bata na janela feita um anjo
E me quebre o vidro escuro da alma
E o céu só seja uma pequena formiga
Caminhando no celeiro das minhas mãos
E as estrelas os passos do meu pensamento
Que as flores brancas não cheirem a sangue
Não aos teus seios esculpidos em mármore
Quero uma arma nas asas de uma pomba
Ser bala de orvalho que extingue feridas
Quero nascer na cortina do fim
Ir de mãos dadas com o arco-íris
Onde a manhã desfaz letras de ódio
No berço quente da cama das ervas
Onde os deuses têm corpos tão claros
Numa boca cega que me mostre impossíveis!

poeta manuel feliciano