4.30.2011

Asas quebradas

A chuva que clareou
Pela verdura dos montes
Nos olhos azuis dos sonhos
Em verticais navios
Desertos por marinheiros
Nas ondas ferradas dos dentes
Pelos ombros dos pinheiros
Despiu-se numa mulher de aveia
Nas rochas trémulas da boca
E só nos deixou uma sombra
Que incendiou o sol por dentro.

manuel feliciano

A espera

O sol arrastado à cabeça de uma junta de bois

E tantos de nós com as pernas

Lavradas nas entranhas da terra…

Na aliança de dedos sem aneis

Disseram-me para esperar foda-se

Coisa estranha a puta da espera

Os braços sem braços

As pernas sem pernas

Até para nascer eu tive que esperar

Mas se ao menos esperar valesse a pena

Para a puta da vida me abrir as pernas



Estes dias de Ulisses na ilha de Calipso

E a Penépole a tricotar na minha garganta

Seriam ainda alguma coisa

Senão hoje vai ter mesmo que ser

Comer um desejo embalsamado

Esperar por uma noiva que tarda em chegar ao altar

E pensar o céu num canteiro

E ter que fazer disto um navio

E ter que fazer disto um Deus amável

E ter que fazer disto uma vida de santo

E ter que fazer disto um doce veneno

Depois que os bois lavraram estas entranhas

Há ratos à superficie

E as cobras atentam contra os ratos

E os ratos fogem da cobras

E eu fujo de tudo isto

Será que eu sou daqui caralho?

Deste jogo de cabra cega

Batendo com os cornos no muro

Como se não haja muros e cornos

E se ao menos o que eu digo fosse uma curta metragem

Mas não…esta merda é crometrada em câmera lenta

Para ser chupada

Lambida

Expurgada

Para entrar no céu completamento limpinho

Sem a toxiciade da nicotina

Não fossem os meus sonhos

A medula de uma pedra

Onde é que estavam todos os meus Deuses?

Onde é que eu poderia tomar um duche

Na maçaneta de uma porta

Onde é que eu poderia estar contigo definitivamente?

Com ternura

As mãos frescas e prontas

Com inocência e vulva

Na boca fresca da brisa

Com os joelhos em sangue nos meus olhos

A lembrarem duas flores vermelhas

Ah não vou gritar porque nenhum Deus vem salvar o mundo

Porque os Deuses também são escravos

Porque os Deuses esperam por tudo

Porque os Deus também são vítimas

Porque os Deuses também estão fartos

Desta máquina enferrujada que tinha que ser podre para ser vida!



manuel feliciano

4.29.2011

Estrada adentro

É agora é que eu preciso de uma rua na minha garganta



E que tu ma possas pisar até doer...



Que a sola húmida dos sapatos

Que usas cor de rosa

Igual às rosas que gemem sempre em todas as primaveras

Sejam veados livres pastando na minha pele

Cheia de erva e pasto





E a tua respiração

A estrada repleta da carne do chão

Onde eu ouço as bocas que afinal





Não morreram





Acredita comigo



Que a minha garganta é a mesma das pedras da tua rua





Que as luzes todas que escutas é o mar

E o mar é a tua voz



E a tua voz sou eu contigo

O sol e a noite

A noite e o sol

Todos os dias na poeira dos ósculos que os rios engolem

Pela minha garganta até ao estômago

Sedento de peixes



Enleados aos teus ouvidos

Que é o nosso céu e as nuvens

Mortas por chover

Como couves mirradas por água



Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh

Não fiques à espera de nada

Espera como quem corre para os meus braços

Rebentado ainda mesmo no Inverno das árvores

Nos desertos onde os barcos não crêem



Mas eu creio em ti meu amor

Como é que eu te posso dizer que creio em ti sem joio

Que as minhas pernas tolhidas

Estão cheias de um oceano mais alto que céu

E as minhas lágrimas estão cheias da tua cara

E que a tua alma agoniada

É um veleiro que me pesa e arde no cérebro

O sangue alimentando as estrelas







Mas pisas-me, pisa-me

Sempre que fores à missa ao Domingo

Não te esqueças que eu sou uma parte do domingo

E que os dias não teriam o mesmo sentido se não fossem pisados.



manuel feliciano

4.27.2011

O luar das sombras

O mar prolonga-se nos cabelos das árvores

E as árvores sulcam a frescura do mar



Os dias não se bebem no latejar dos astros

SER é o único tempo

Enlaçado a todo o recomeço

como se os olhos magoem toda a verdade

Inocente

Pequena

Abismal

Enquanto que gotejamos na garganta das flores

Pensamos que não sabemos das flores, árvores e astros

Mas tudo isto nos arde



E nasce, sente, e envelhece connosco

E sentir é a visão do mundo

As únicas mãos pálpaveis

E a morte enlouquece-me com tanta vida

De meninas

Na sombra verde das árvores Como a brisa me encarne

Nas asas húmidas de frutos

Porque eu me dou todo por inteiro

Até que o grito infinito do amor

me colha nas pálpebras do berço

Onde até os Deuses choram

Com a mesma boca que me oferecem

Uma criança constante!



manuel feliciano

4.26.2011

Luar de sangue

Fiz do silêncio dos olhos

As palavras dos nossos braços

Do cérebro inflamado

A andorinha do teus pés

Da garganta com ponteiros

O teu vestido tão líquido

Da espera empedrenida

Um candelabro na boca

No chão que falseia

A ponte que nos segura

Do peito desfeito em terra

Duas bocas desejosas

Da exaustão em sangue

O teu corpo no céu

Mesa do meu prazer

Para finalmente comermos

O muito que ainda nos sobra!



manuel feliciano

4.25.2011

Viris Sombras

Hoje uma voz disse-me que eu era eterno

E que as pedras afinal têm garganta e carne



Como que um vulto a engolir o deserto

E uma pápebra a consomir-me todo o pó

O pó de andar sempre à procura de não ter pó

E brilhar num grito

De uma púbis tão virgem

Cheia de palavras

E de um tesão branco



E uma laranja inchada respirou-me a alma



Que vida tão lubrificada escrita nuns lábios tão surdos





Que têm a sabedoria de ter a surdez do teu pântano

Retalhado nos collants do céu



Como se um choro enraizasse nas têmporas do tempo

E uma luz lambesse bocados do escuro



Com galáxias dentro de um lugar inabitável

Cheios de seres sem corpo

Uma noite coube-me toda na vulva da voz

De uma memória tão húmida

E gástrica que me ardeu nos neurônios

E o amor ressucitou pássaros de ervas já secas

E as minhas mãos



Onde estavam as minhas mãos?

Num décimo andar

Onde nenhum homem se lembra de cobrar impostos

Nem ninguém pensa dactilografar

No meu umbigo

Abelhas nos vasos das flores do canteiro

A sociedade vista de cima

Sombra do meu pênis a latejar

E ainda bem que se esqueceram de mim

E todos os frios se lembram de me trazer

Os teus seios para me aquecerem

Que não me trouxeram a esperança mirrada nos figos



E porque as minhas mãos estavam livres

Mamei o leite nas friestas da fome

Como quem vê o rio

A fugir ao longe

Trémulo de febre

Nas águas furtadas de um telhado





E ao longe num ocenano que eu mesmo desconheço

Eu esculpo nesta cicatriz com quem a purifica

O amor que ainda é uma árvore dúctil a nascer na chuva





E dou por mim a vir-me na quilha de um navio

A foder todos os séculos que ainda estão por vir

Que todos os que já foram não me sabem a nada.




manuel feliciano

4.23.2011

Mísero oferecer

Se era para me dares as tuas mãos

Que não tinham fome

Se era para me dares os teus olhos que não tinham sede

Desses-me antes punhais

Que os fazia anjos

Desses-me a noite que eu a tornaria lua

Trouxesses contigo o cantar do Outono

Que tem a miséria de ser grande

E de me iluminar toda a minha alma

E me dar as flores que a Primavera não soube!



manuel feliciano

4.21.2011

Matéria Evanescente

Os teus olhos

Leio-os, até ao fim desse livro virgem

Desse mar do qual sou estranho

E dói-me o ruido dos pés



De feiticieiras ancestrais no absurdo dos muros que se prolongam



E o mole do beijo é tão duro.



O que sou? Pergunta-me uma noite de aço

Uma galinha sem crenças na lama.

A voz que sobeja por fora Sou tudo sem razão e ossos

E não consigo transbordar as margens. E o lábios não calculam o íntimo





E a memória rasteja a meio da ponte



Puta que pariu a máteria

Gritou-me uma voz de um tempo longo







E vejo o eco da minha sombra

Nos corredores evanescentes da boca.

Nas massa muscular do corpo

E os galhos de árvores voando nas aves



Sou muito mais que esta terra velha e seca. Que a surdez dos operários

Que a imagem obsuleta e escura

Num vestidinho cor de rosa

Eu vejo como a água corre

No cantar dos frutos



Os olhos são um lugar que nada veem

Tenho as mãos tão sofregas por nada saber dos olhos

Senão dos raios que lhes engolo

Mas os olhos são um lugar de assombro

São quando te beijo

Um livro fora de todas as leis do tempo

Nas malhas da pele.



E eis que ela me esmaga com as coxas

Como se uma mão me arda mais além

E me mostre o incógnito voo. O que me dá a percepção de alguma vez os ter visto.







manuel feliciano

4.20.2011

Medo de existir

Há um medo ao longe dentro de mim

Que nasce fora de tudo

Como eu seja o longe e todas a coisas me gritem

Digam-me quem eu sou

Que eu estou cego de tudo

Num clarão das madrugadas

Quebrem todo o meu medo

Numa boca quente

Terna de misericordia

Como se uma sílaba me falte nos cabelos

E as reticências não cessem as fontes

Onde eu danço despido

Tão despido que só posso ser

Eu

Tu

Nós

Flor e sombra

Floresta e sol no moínho das tábuas

E o silêncio da eternidade

A refazer outra voz

Porque eu não sei de mim nem da coisas

Como as conheça

Como as sinta a palpitar

Numa voz que me arde no peito

Que eu sinto no crepúsculo da língua

E me esconde de um qualquer lugar

Que me abraça e descontroi

Tenho medo

Como a minha mãe comigo ao colo

Não seja mar

Lágrimas e sorrisos embrulhados nos dedos

Mel nas flores e nas abelhas

E o coração Estrelas com gotas de amor

Como se tudo isto não baste

E a maravilha não me arda na garganta

Como eu esteja em tudo e pense que é só deserto

Este braços grandes da matéria dos lagos

Tenho medo

Como se o cheiro te esconda por detrás

E te diga não com a boca enrolada em névoas

E um corpo nasça do nada

com o sol a querer espreitar.









manuel feliciano

4.19.2011

Páscoa

Pensas que amei essas lágrimas em cachos

A voz abrindo-se no útero das tábuas

As palavras nos ouvidos dourados das folhas

O coração sempre do mesmo lado

E os pregos no lugar dos dedos

As andorinhas ácidas na boca



E o amor de mãe em carne viva



Pensas que fiz uma vénia à múmia do mundo

A latejar de morte

E clamei pela casa desfeita

Num sorriso derrocado

E amei os gestos sem nenhum umbigo

Pensas que exaltei



As coxas da neve

Uma árvore despida

E as moedas de César

A espada que nada sabe da ternura

E os lábios que tudo sabem sobre a espada



Pensas que quis

Toda a brutalidade do homem

A podridão dos seus actos

Toda a alma suja e porca

Neste altar feito de esperança

Íngreme como um luar de Inverno



Quero que saibas ainda hoje que:





Vomito o chão e as suas visceras

Digo à brisa para expurgar o sal

À boca para não saber mais de si

Aos olhos para se envergonharem

Ao corpo para se desfazer nas nuvens

E ao sol que não traga consigo uma cruz

E o teu sangue que seja sempre uma flor a nascer

E a tua dor uma ave que quebre todo o céu rochoso!







manuel feliciano

4.18.2011

laivos de liberdade

A liberdade sabe-me a uma mulher cheia de frutos

E quando os toco

os saltos

abundam-me por inteiro na garganta.

E o tronco a desaparecer nos olhos é o sol

E o vestido a elevar-se em estrelas é uma brisa

E a unhas cravadas na carne é o céu

E os morangos esmagados entre os dentes

É um avião pousado na água

E a flor a abrir-se é um grito de ferro

Na popa azul de um navio

A culpa é do mundo

Pediram-me para ser livre lavrando os meus próprio ombros

Desenhando a vênus de cristal com o meu suor

Esculpindo desejos nas pálpebras douradas

Pediram-me para ser libre

Fazendo de conta que ela existe

E o meu corpo é toda uma gaiola aberta

E o meu pensamento é uma dançarina nas nuvens

E a liberdade é só para aqueles que brincam

Ainda com as mãos tenras de pétalas

Em asas desencontradas

E vão sempre em frente como quem se refugia no útero

Iguais a si mesmos

Contra palavras

E vozes

E gestos endurecidos na terra

E pensamentos atados aos cornos de um bói

Mordendo em arados.

Que em nada acendem este luar de Inverno!







manuel feliciano

4.16.2011

Mãe

Quando quieseres dizer que me amas: diz mãe

E o coração saber-te-á por inteiro





Não me abraces: diz amor amor em gestação

Depois acarícia o feto e alegra-te

Como uma flor transformada

Com a voz dentro de outra voz.





Não me beijes: Sente a tua barriga em lume

A iluminar-te sem peso

Com o teu corpo vergado

E um pouco mais de ti a estender-se

E o teu eu em outro eu.



E se por ventura chorares

É porque às vezes o choro é uma forma de sorrir profunda

E o amor é um filho dentro da boca

E o ombigo é o rio que nos enlaça



Quando quiseres dizer que me amas: diz mãe

Mas não te esqueças com o mar nos lábios

Porque o amor dói como o sol em carne

O amor é morrer para ser outro.





manuel feliciano

4.15.2011

Dias improváveis

Da vida eu não sei nada

Mas este nada é da força das árvores ancestrais





Se as flores não choram

Em mim choraram tudo

Se não sorriem

Em mim sorriram tudo



E a terra meu amor

A terra de que todos temos medo

A terra não nos consome o sorriso

Nem os sonhos

Nem a ternura com que trocamos

Beijos na fonte

E a terra só é fonte e beijos

Um lugar cheio de lugares um não para todo o sim

A vida é o sentir das coisas

A vida dispensa todo o corpo

A vida é sempre que Deus queira



A vida não tem muros que a impeçam

E algemas que a agarrem



Ah maçãs, doces maçãs!

Que morreis para o amor da vida

Na vermelhidão das bocas

Alguém sabe alguma coisa sobre maçãs?

Quando a humidade do sumo procura a língua

E atravessamos todo o rio da eternidade



Alguém as saboreia de facto

E engole a brisa que lambe a ânsia?

Quando serpenteamos lugares com os olhos fechados

E seguimos veredas sem qualquer corpo

No êxtase sagrado dos sentidos

Há uma verdade que nos fala sem boca

E desaguamos nas coisas improváveis

Como se o amor desprenda os ferros

Como se a voz se prolongue



Ai tenho os meus olhos cheios de um grito de luz

De gente cheia de vida

Que a escuridão aborta

A atravessar o dorso da montanha como o sol

E dói

E sabe a dias incontáveis

Ai ânsia do que não morre

É urgente que mos sintas.

manuel feliciano

4.13.2011

Ausência em corpo

E quando não te tenho também te tenho

E a tua ausência escorre-me em fetos nos olhos

E não te ter é ter-te duas vezes

E quando não te tenho é amor

Porque as coisas existem dentro e fora

Porque as coisas existem mesmo sem boca

E a brisa tem a propulsão do teu corpo

E o mar o eco do teu olhar

E as minhas mãos são duas árvores cheias de ti

E as minhas lágrimas são palavras que te chamam

E o teu silêncio tem a forma dos teus lábios

Até as águas sentem

Até as aves cantam

Que quando não te tenho também te tenho

Como a chuva a rasgar as pedras

Como o rio ao encontrar o mar.





Manuel feliciano

Absent in body

And when you've also not got you

And your absence in fetuses runs me in the eye

And do you have is you twice

And when you do not have is love

Because there are things inside and outside

Because things exist even without a mouth

And the breeze is propelling your body

And the sea echo of your eyes

And my hands are full of thee two trees

And my tears are words that call you

And your silence is the shape of your lips

Until the waters feel

Even the birds sing

When you have also not got you

As the rain to rip the stones

As the river to find the sea.





Manuel Feliciano

4.12.2011

A sombra do sol

Trago na minha alma

Uma mulher tão magra e húmida

Que me crava enlouquecida os dentes de desejo.

E o meu gemido incendeia o escuro

É a minha dor é um cacho de uvas

E o meu silêncio é carnal e táctil

E eu beijo como quem desenha sem tinta

A estrada que só conhece a pele

Não nos nega nada e a terra é fértil.
Porque os lugares sou eu só que os faço

Porque a ausência é um corpo de astros

E um cheiro que sobeja estrelas.

E como nós dançamos em forma de barcos

E peixes zonzos vagueiam pelo sangue

E os meus olhos doem-me como úlceras

Eu trago-te toda em mim despida

E não ter nada é um orgasmo nas tuas coxas

E não ter nada é um sorriso de boca aberta

E não ter nada é o coração no mundo

E a pobreza em nós é toda chama

E o nosso estômago é um luar cheio de céu.







manuel feliciano

4.11.2011

Mundo

Hoje tu e eu vamos mesmo se há uma chuva de balas

Eu acredito que a canção está mais à frente….



E não é meu amor

Que a minha consciência não me doa

Não é que no meu coração não haja cadeiras de rodas

Camas de hospitais com crianças a chorar



Mas porque há tudo isto

É que eu quero ir contigo mesmo se há uma chuva de balas

A terra tem que me ouvir sem mais espera

O vento tem que deixar escorrer todo o meu pranto

O tempo tem que me abrir toda a luz

Porque eu não tenho mais tempo para escutar as mãos frias

Porque eu não tenho mais tempo para nenhum Deus

Porque eu não tenho mais lugar onde ficar

E eu quero seguir em frente mesmo com os músculos rasgados

Eu quero ir contigo mesmo que me doa

Com a minha consciência em carne lamber o escuro

E plantar o AMOR nas trevas

Eu não quero que sintas que estás só

E para que não sofras eu vou contigo

Como um pássaro bêbado pelo primeiro voo

E alguém ao fundo terá que cantar para nós

E alguém ao fundo terá que nos abraçar

E nos dizer porque diabo é este o mundo

Porque ninguém pode perder o azul que jorra

Porque a vida tão pouco o deixaria.





manuel feliciano









manuel feliciano

Imensidão

É de uma luxúria imensa este medo que não assombra
E a vida há-de ser sempre um lugar muito mais além

Não houve mar porque toquei os teus cabelos no fundo
E quando devia ter tocado o sal só vi o sol

As casas vazias
As casas vazias e magras
Cheias de perfume intenso
Do cheiro contínuo da púbis
Do parto prolongado
Da floresta densa cheia de sons
Do ombigo florescendo nos ouvidos
Da flauta ecoando nos punhos secos
A morte é tão verdadeira como eu estar vivo.

Eu sei que estas latas velhas não são tudo.
Nem o mal nem o bem em que giramos
E a vida é um corpo irrespirável
A luz tem uma voz doce e pulmonar
A vida é tão somente quando acordamos
E temos a ideia de que alguém nos abre os braços
Da cor da primavera e da eternidade
E a primavera é o dia em que nascemos de um sono profundo
E a primavera há ser sempre o dia em que vergamos
Outro tempo em que nos imaginamos perfeitos
Em lugares que dispesam a esperança
Para além de pontes falsas e cheias de abismo

Em que eu e tu não acreditamos.
Da mesma forma que não acreditamos ter nascido.
Não vale a pena nenhum choro. Porque até o choro é de uma diemensão divina
De um poesia perfeita, que nos escuta.
E quantas vezes eu choro, porque o meu coração
Me escuta, e eu penso que estou só, mas no limite da curva, prolongo-me
eu tenho a consciência, que os meus fios de cabelos, desmentem todas as descrenças, e agradeço a Deus por ter nascido.



manuel feliciano

4.10.2011

Silêncio

O meu estômago está cheio de estrelas

É preciso que as escutes contra as tempestades

Que as engulas antes que chova

Ergue as velas dos olhos no escuro

Como quem vai descalço em espinhos

Porque os olhos são colheres vazias

Vê por dentro sem quaisquer muralhas

Os rostos que pouco ou nada dizem

Vê-las é o menos interessante

Escuta-as com o silêncio das mãos

Na força das raízes que crepitam

Com um grito enrolado no oceano

Como se a tua boca chorasse num parto

Como eu habite todo o teu silêncio.




manuel feliciano

Metade de mim

Não sabes o quanto me custa esta verdade

Mas metade de ti eu já tenho

Os meus olhos andam loucos

Como duas fontes cheias de sede

Se a tua face não vêem

Com a mesma verdade que o trigo

Incendeia a terra

Assim a minha boca to quer escrever

Sem ti tenho o desprazer de ver nas árvores

Uma mera chuva destrutiva

E nos jardins sombras de sonhos

E eu sei que os meus cabelos estão vergados de amor

E como tu aqueces a paisagem

E estrangulas o tempo

E desenhas andorinhas na minha boca

Guarda o meu olhar puro e pobre

E as noites serão perfeitas

Mesmo com a morte

Mas não me dês nada

Diz-me só com os olhos cegos que me amas

E deixa que as minhas pálpebras

Desinchem no teu umbigo

A tumefação das caravelas no mar

Sem gestos que quebrem a tua aura

Também não te canses com as palvras

Deixa só o teu perfume cantar canções

Porque eu tenho medo se não me olhares

De provavelmente nunca ter nascido.




manuel feliciano

O amor

Meu amor sente de longe o amor comigo

Mas não me queiras dar os teus cabelos

Deixa que eu conte os séculos nos fios

O tempo em que andavamos desnudados

Em que tinhamos fome mas eramos felizes

E nos alimentavamos do cantar das aves



Também por ventura não me dês as mãos

Porque importa-me que elas sejam pássaros

E que levantem sempre quando as toque

Comer-lhe uvas em dias quentes de Verão

E quando o Inverno se apoderar da pele

Deixa que elas sejam o meu próprio fogo



E se o teu sorriso me quiser assaltar a boca

Deixa uma nesga de fora para tomar mais tarde

Senão eu saberei já tanto do campo e das flores

E eu quero-te degustar como pela primeira vez

Em que latejavamos para saber o que era um beijo

E o amor era o desejo de mãos dadas em gestação.







manuel feliciano

4.09.2011

Animalidade

Hoje eu quero ser cão e não mais que cão

Se me prometeres que me dás migalhas

Da tua bela boca com as quais te dispo

Nesse teu sorriso de pérolas

Com o conforto de que há tudo

Nas sílabas virgens da pele

Que o estômago vazio sonha

Eu juro que isto é muito mais que o céu

Que o aveludado da comida

E se por ventura

Me quiseres dar as mãos

Eu preferia que mas desses frias

Porque são as frias que têm os barcos

E que esperam comigo lapidar caminhos

Evolar-me numa nuvem cor de rosa

Ver-te dançar alegre nos meus ombros

Corrermos por entre campos tão líquidos

Sentir o orgasmo na flor que não seca

E se por ventura mas quiseres dar quentes

É provável que o teu peito seja um texto cheio

Que não permite os mistérios da minha língua.




manuel feliciano

4.08.2011

A menina da pastelaria

A menina da pastelaria

Que me vendia pasteis

Na seda fresca das manhãs

Perguntava-me a sorrir

Se eu queria o pastel de sempre



E as suas mãos

Eram uma prisão

E os seus olhos

Candelabros por acender

E o seu corpo

A raíz quadrada da flor



Mas no mar

Que lhe trasbordava da boca

Eu e ela

Molhamos as mãos e os pés

Saltamos as pedras

E desatamos lágrimas

Dissemos não

Às árvores de aço

E choramos mel

Nos olhos sôfregos de amor





E eu nunca soube

Quem era a menina

Da pastelaria

Nem tão pouco a vi

No jardim da vida

Senão na farinha

Húmida do meu ser.







manuel feliciano

4.07.2011

Almas gémeas

Eu e o meu pensamento

Somos duas pessoas

Embrionárias de sol

De mãos dadas rua abaixo

E o acto de pensar

É uma faina de gente

E o meu coração

É uma mulher donzela

Lançando-me olhares

Em cada esquina da vida

Na promessa de peixes

Aturdidos num beijo

Perdoem-me todos aqueles

Que são escravos da carne

Os que não se encontram

Na cápsula de si mesmos

Como as coisas ganham

Um trago amargo se as toco

Só os braços ao longe me consolam

Eu que não sei nada da chuva

Depois que a terra com amor a sulca

Quanto menos tenho mais sinto as coisas

Como me assassinas com a saliva nos lábios

Para mim basta-me a ideia de um beijo

Porque a ideia de um beijo é um rio de coisas

E um beijo quando dado é a morte de tudo

Só o impossível me arde e me afaga

E é o único Deus que me transforma o mundo.







Manuel Feliciano